O Brasil vive um momento histórico: após anos de espera, finalmente temos um mercado regulado para apostas esportivas e jogos online. A promulgação da Lei nº 14.790/2023 destravou uma pauta há muito tempo encalhada — e nisso, o atual governo merece reconhecimento. Ainda que o drive principal tenha sido a arrecadação, o setor recebeu com maturidade a regulamentação, entendendo-a como uma conquista coletiva.
Mas regulamentar é, acima de tudo, proteger. Proteger o mercado, o governo, o consumidor. Quando a regulação vira apenas uma ferramenta de arrecadação desproporcional, sem contrapartidas claras, ela deixa de ser regulação. Vira asfixia.
O aumento da alíquota de 12% para 18% sobre o GGR — que já é dada como certa por muitos especialistas — representa exatamente isso: uma guinada perigosa de uma política regulatória para uma política de confisco. Uma aposta arriscada que pode matar o mercado legal antes mesmo dele amadurecer.
Muito se fala sobre o impacto para as operadoras B2C, e ele é grave. Empresas pagaram R$ 30 milhões pela outorga, investiram em estrutura, marketing, tecnologia, emprego e capacitação. De acordo com o IBJR, já foram arrecadados mais de R$ 2,3 bilhões em autorizações no início de 2025. Esse planejamento foi feito com base na alíquota vigente de 12%. Qualquer mudança repentina compromete o equilíbrio econômico-financeiro dos contratos firmados, desrespeita o princípio da confiança legítima e abre caminho para a judicialização.
Mas o impacto vai além. Empresas B2B, como fornecedores de jogos, plataformas, sistemas antifraude e meios de pagamento, firmaram contratos com base no mesmo cenário tributário. A elevação da carga compromete toda a cadeia e desestimula a entrada de novos players — em um momento em que o país deveria estar atraindo inovação, não afugentando.
Tributar, sim. Confiscar, não.
Uma casa de apostas legal, por ser uma empresa devidamente registrada no Brasil, já recolhe impostos como qualquer outra: IRPJ, CSLL, PIS, COFINS, ISS ou ICMS. Uma taxação específica sobre sua atividade só se justificaria se houver retorno direto à regulação — como investimento em fiscalização, combate ao jogo ilegal, e ações sérias de jogo responsável. De novo, proteção ao governo, mercado e jogador.
Ainda assim, o mercado engoliu o tal “imposto do pecado”, como é chamado por alguns parlamentares, revelando desinformação e uma narrativa contaminada por discursos morais enviesados que insistem em demonizar uma atividade legalizada, licenciada e economicamente relevante. Agora considerar aumentá-lo de 12% para 18%, com destinação genérica e sem diálogo com o setor, é desproporcional.
Segundo a ANJL, o mercado ilegal de apostas representa cerca de 60% do volume operado no Brasil. No primeiro trimestre de 2025, o mercado regulado movimentou em torno de R$ 3,1 bilhões por mês, enquanto o ilegal girou entre R$ 6,5 e R$ 7 bilhões mensais. Ou seja, o verdadeiro foco deveria ser o combate a esse descontrole – e não o sufocamento de quem atua dentro da lei.
Da porteira de fazenda ao portão de guarda
Antes da aprovação da lei, a metáfora usada pelo advogado Luiz Felipe Maia para descrever o ambiente de jogo no Brasil era a instalação de cadeados e correntes numa porteira cujas laterais estavam escancaradas. Hoje, a realidade mudou — e a analogia também.
O mercado regulado se parece mais com o sistema de portão de guarda de prédio: o primeiro acesso até parece simples — um botão, um código, um reconhecimento facial. Mas aí vem o segundo portão. E ele não abre. Aí o sistema pede senha, depois trava, depois exige validação. Enquanto isso, quem entrou pelo fundo já está nadando de braçada na piscina do condomínio. Um condomínio que você ajudou a construir, para o qual paga IPTU, condomínio, segurança — e mesmo assim não consegue usufruir.
O consenso absoluto é que o aumento da carga irá empurrar empresas e consumidores para o mercado não licenciado, onde não há fiscalização, proteção ao apostador ou qualquer tipo de responsabilidade. E vale destacar que muitos dos comportamentos criticados – como o uso indiscriminado de influenciadores, ausência de certificação ou clones fraudulentos de jogos – são, justamente, práticas recorrentes nesse ambiente paralelo.
Correção de rota para um caminho promissor
O Brasil percorreu um longo caminho até aqui. A regulamentação do iGaming, mesmo tendo surgido sob o impulso da arrecadação, foi um avanço institucional. Ela trouxe regras (quase sempre) claras, atraiu operadores sérios e despertou o interesse de investidores que reconhecem o potencial do país como destino relevante para o setor — tanto no B2C quanto B2B.
Mas nenhum sistema, por mais bem-intencionado que seja, está imune a ajustes. A analogia do portão de guarda, onde o operador legal entra por um acesso controlado, é travado por excessos e observa o mercado ilegal operando livremente, é ilustrativa — mas não definitiva.
A solução não é abandonar o projeto — é aprimorá-lo. O que se pede não é o afrouxamento da regulação, e sim um equilíbrio fiscal que preserve a competitividade, estimule a inovação e valorize quem opera dentro da lei.
O Brasil já conquistou respeito internacional com o seu modelo regulatório — e tem agora a oportunidade de consolidá-lo com responsabilidade, transparência e diálogo.
O setor não pede privilégio. Pede previsibilidade. Pede coerência. E acima de tudo, acredita no projeto de um mercado regulado que seja, de fato, sustentável — para o Estado, para os operadores e para os investidores que apostaram e continuarão apostando no Brasil com seriedade.
(*) Eliane Nunes, Chief Growth Officer da Salsa Technology